29 de set. de 2009

UM CONVITE À REFLEXÃO E À EMOÇÃO: “LEVANTADO DO CHÃO”








A peça “Levantado do chão”, baseada no texto homônimo de José Saramago, emociona não só pela indiscutível beleza e cuidado de sua produção, mas sobretudo pelos temas que apresenta. Ao dramatizar a saga de quatro gerações da família Mau Tempo em Portugal, figuram temáticas como a exploração do trabalho dos camponeses, as demonstrações de insatisfação desta classe para com os seus senhores, a identificação das revoltas daqueles com o comunismo, o papel da Igreja Católica na justificação do caráter “natural” da exploração do homem pelo homem, a histeria do discurso anticomunista produzido pelos setores interessados na manutenção desta exploração. E tudo isso em pouco mais de uma hora e quarenta minutos de espetáculo!

Especial reconhecimento deve ser feito à escolha do texto de Saramago e a forma como ele foi apresentado. Em uma época na qual impera uma ideologia de que não existe alternativa ao atual sistema, eleger o texto do prêmio Nobel de língua portuguesa é um dos grandes méritos do espetáculo. Além disso, a maneira como os produtores encenaram alguns diálogos traz à tona elementos de um discurso bastante enraizado no senso comum. “Acaso não sabem que o mundo é assim por um desígnio de Deus?”, declara em certo momento da peça uma de suas atrizes. “Eu, que sou o seu benfeitor, aquele que lhes oferece o trabalho, é contra mim que protestam?”, brada um dos atores que representa o papel de dono do latifúndio. Nada poderia ser mais explícito na crítica dos argumentos ideológicos de sustentação da expoliação do trabalho alheio do que estas frases. Assim dramatizados, tais diálogos revelam, por um lado, o poder da ideologia da naturalização das relações sociais hoje existentes e, de outro, que a validade deste discurso, apesar de suas aparências, não resiste a uma crítica mais aprofundada.

Destaque também para a apresentação de um elemento da história de Portugal pouco discutido mesmo pelos especialistas neste assunto. Resgata-se o papel dos camponeses na luta pela derrubada da ditadura filo-fascista de Salazar, que perdurou no poder por quase cinqüenta anos (1926-1974). Freqüentemente é dada ênfase à articulação de militares de médio e baixo escalões no combate ao regime salazarista, abordagem que acaba por deixar à margem da história os enfrentamentos radicais entre grandes proprietários de terras e camponeses. Não cabe lugar a dúvidas que os seguidos motins militares agiam sob a base de um movimento civil mais amplo, e parte deste é retratado em meio ao cotidiano dos Mau Tempo, família que representa as derrotas e vitórias dos camponeses antes e durante o salazarismo.

Apesar de ser dramatizado com base na história de uma família portuguesa, é inegável a analogia que o texto de Saramago faz à realidades próximas e distantes das terras lusitanas. Se os portugueses – ou o gênero humano – ainda não conseguiram realizar o sonho de uma “terra da fraternidade”, como expressa a canção “Grândola, Vila Morena”, lindamente interpretada pelo coral da peça, é porque a tarefa de superação da exploração do homem pelo homem ainda será longa e árdua. “Levantado do chão” é um convite à reflexão sobre esta penosa história da miséria humana. E é também um convite a se emocionar pela forma como foi dramatizada, deixando ao final uma mensagem otimista de que há alternativas a esta realidade. O sofrimento dos muitos Mau Tempo que por aí existem não poderá ter sido à toa.


Vicente Gil da Silva

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